29 de novembro de 2012

Escritora viciada em jogo perde (quase) tudo

Assistir ao Intervenção do canal A&E
e ler Diário de uma (ex-) JOGADORA
me fizeram ver que minha cruz é de isopor. E a sua?


(Fotografia de Abbey Hendrickson)

Eu tenho TV a cabo. Você tem? É claro que meu marido Farney e eu não temos todos os (bons) canais, porém, de vez em quando, certamente para conquistar mais clientes para a maioria dos canais, a NET - empresa que contratamos - disponibiliza um, dois, três ou até cinco que não assinamos. É uma ótima oportunidade de assistir a programas interessantes como Intervenção, exibido nas noites de quartas-feiras pelo A&E.

Como explico na página About deste Blog, gosto muito de observar o comportamento dos seres humanos. Não tem gente que gosta de árvores, de orquídeas, de peixes, de discos? Eu gosto de livros e de gente. Ver como as pessoas ao meu redor (ou nem tão ao meu redor assim) e eu mesma nos comportamos frente aos momentos felizes ou trágicos me fascina. Reuniões de família são um prato cheio para mim. Admito.

Sim. Intervenção não deixa de ser um reality show. Contudo, há duas grandes diferenças: 1ª) não é um reality "novela", que faz com que o telespectador tenha que acompanhar o desenrolar do programa por dois ou três meses, para ver no que vai dar e 2ª) não há um prêmio espetacular em dinheiro. O máximo que o principal participante do Intervenção recebe é a oportunidade de se internar em uma boa clínica, a fim de "se livrar" de algum vício: cocaína, crack, álcool...

Ah: acho que não expliquei direito.

Intervenção é um programa de uma hora de duração que exibe a vida de uma pessoa viciada em alguma droga, incluindo a vida daqueles que convivem com ela e têm que lidar com a sua doença: pais, filhos, esposa, marido, namorada... Há histórias que aconteceram nos Estados Unidos e até mesmo aqui no Brasil. É muito forte, porque mostra a pessoa se drogando. Cheirando pó, encharcando-se de bebida alcoólica... E os parentes chorando, rezando, sofrendo muito.

Nessa quarta-feira, meu marido e eu acompanhamos a história de Kristine. Viciada em vodka. Ninguém: nem seu pai, que morava longe, nem sua mãe, nem seus irmãos, nem o marido (soldado da Força Aérea dos Estados Unidos) aguentavam mais vê-la se destruir fisicamente: o sangue de Kristine estava tão detonado, que os médicos suspeitaram de uma leucemia, mas era apenas o resultado de anos de abuso de álcool.

Fotografia de yamada taro

Fotografia de Petr Kratochvil

Enfim: no ápice do programa, toda a família se reúne para fazer a intervenção - daí, o nome da atração do A&E. Se o viciado concordar, ele segue imediatamente com um profissional, que também participa da reunião dramática com os familiares, até uma clínica especializada na recuperação de dependentes químicos - na qual deve ficar por cerca de 90 dias. Kristine relutou, quis primeiro se despedir da filhinha de 4 anos de idade, e logo em seguida... Partiu.

Embora eu tenha me delongado no assunto, este Post não é sobre o programa da TV a cabo, internauta d'A Católica. E sim, sobre um livro - livrinho, na verdade - que acabei de ler também nessa quarta-feira: Diário de uma (ex-) JOGADORA (Paulinas, 2012). Se comecei falando sobre o Intervenção, foi apenas porque os casos exibidos lá são parecidíssimos com o que li na obra assinada pela historiadora, jornalista e redatora Ana Rita.

Soube a respeito do livro através da revista da editora católica que recebo pelos Correios: "Paulinas e Você". Só pelo título, ele já me atraiu, porque fico curiosíssima pra saber como o mecanismo do vício funciona, como ele é ativado, qual é o CLICK que faz com que aquilo que parecia casual, uma distração, um momento de aventura ou de lazer, se transforme num inferno para o viciado e para os que convivem com ele.

Só sei de uma coisa.

Poucas coisas na vida são tão difíceis de lidar quanto o vício de alguém querido. Não há cura. Para sempre aquele (ou aquela) dependente químico vai precisar se vigiar e contar com o olhar atento daqueles que lhe são caros.

O Diário de uma (ex-) JOGADORA me deixou no mesmo estado em que fico quando termino de assistir ao Intervenção na televisão: completamente cheia de comiseração. Em outro termo: de compaixão. Não consigo assistir aos programas nem ler um livro tão honesto, como este das Paulinas, mantendo-me distante do drama, com um ar altivo ou de alívio: "Vício é para gente fraca, que não tem o que fazer".

Fotografia de Junior Libby

Fotografia de George Hodan

Este enredo também é nosso: a compulsão por algum tipo de atitude existe dentro de todos nós.

Se não é nosso caso fumar dois a três maços de cigarro por dia, podemos ser "viciados" em Internet ou em celular.
Se temos horror a álcool ou jamais cairemos nas garras nada tênues da cocaína, podemos não resistir à fofoca. Podemos sucumbir ao prazer de falar mal dos outros e da vida deles - conheço inúmeras pessoas com esse vício.
Se a jogatina não nos atrai, podemos ser consumidores inveterados. Que acabam com o dinheiro que têm - e que nunca terão - em sapatos, roupas, televisores de plasma (ou "de plasta", como prefiro chamar).

O livro de Ana Rita, filha de Regina, com quem morava, e mãe de Bruna, que tanto lutou pela recuperação da mãe, não tem um final feliz. Para o dependente, não existe "meu problema acabou. Aleluia!". A autora declara:

... Devo confessar: o jogo ainda me assusta. Gosto de jogar, da sensação de ganhar, de sentir a adrenalina correndo nas veias. Sei que não sou uma jogadora social - sou compulsiva - e que tenho de me controlar para o resto da vida. Sei e quero. A compulsão não tem cura e tenho um longo caminho pela frente.

Durante a leitura, lembrei-me do Padre Léo.

Em uma de suas maravilhosas palestras, proferidas em acampamentos de oração na Canção Nova, ele dizia que um dos lugares mais feios nos quais já esteve foi um cassino em Lisboa, em Portugal. A entrada, descrevia, era glamorosa: enormes colunas, piso de mármore. Lá dentro, entretanto, havia inúmeras pessoas sozinhas, uma sem olhar ou conversar com a outra, vidradas em máquinas de jogo, com um cinzeiro ao lado, no qual batiam as cinzas de seus cigarros enquanto desciam uma manivela para apostarem. Cena deprimente, garantiu.

Pois Ana Rita, em seu livro, conta que uma colega de trabalho a convidou para ir a um bingo pela primeira vez. Era setembro de 1998. A autora comenta que o local lhe pareceu cafona: "um mar de mesinhas redondas, com cadeiras estofadas combinando com o carpete colorido". Depois, quando o vício começava a instalar-se, reconheceu: "Não sei como, mas comecei a achar aquele ambiente - que até pouco tempo atrás eu achara brega - divertido e relaxante".

Pessoas jogando bingo

Fotografia de kees jonker

Pessoas jogando bingo.
À direita, uma mulher esconde o rosto com uma das mãos

Fotografia de Andrew Bossi

Ela continua:

Gastava uma média de cinquenta reais por dia, que eu justificava para mim e para minha família dizendo que era a quantia que eu gastaria indo ao cinema, ao teatro, a um restaurante.

É muito comum ouvir um jogador dizendo "Faz de conta que eu comprei um sapato novo", depois de perder. Ou então "É melhor gastar dinheiro aqui, se divertindo [sic], que na farmácia, comprando remédio". Parei de fazer contas, com medo de perceber que aquela brincadeira estava ficando cara.

Fazendo eco à palestra do Padre Léo, a autora relata que "quase todos os jogadores fumavam compulsivamente". Quanto às máquinas, às quais o sacerdote se referiu, ela diz:

Certo dia [era março de 1999] ela [Dayse, assistente social de cerca de 50 anos de idade, frequentadora assídua do bingo] comentou que estávamos viciadas e levei um susto. Viciada, eu? Nunca! Achava que podia parar de jogar quando quisesse. E, naquele instante, tudo o que eu queria era continuar. Mas ser chamada de "viciada", daquela maneira tão natural, me incomodou.

Observava as pessoas que jogavam no computador, com cinquenta, cem cartelas, e pensava: "Eles são viciados, eu não. Eu jogo na mesa, com apenas uma cartela, para me divertir".

Mas a Dayse, que conhecia quase todos os frequentadores, estava disposta a me convencer: "Está vendo aquele japonês? Perdeu tudo no jogo: casa, chácara, carro. Antes ele jogava só no computador. Agora, que não tem mais nada, joga na mesa".

Ana Rita prossegue:

Combinamos de nunca jogar no computador. E com a certeza de que jamais seria uma viciada, me entregava aos números e me esquecia de tudo. Até das horas - o que não é difícil, pois uma das estratégias dos bingos é não ter relógios à vista. E eu, mesmo percebendo tudo isso, jogava o jogo deles e chegava em casa cada vez mais tarde.

Fotografia de Ramon FVelasquez

Fotografia de Chitrapa

Mentiras para a mãe Regina, à filha Bruna e aos colegas de trabalho se tornaram parte de sua rotina: "No trabalho, também passei a mentir para justificar meus contantes atrasos. Jogava até de madrugada e, claro, não conseguia acordar de manhã". Só não foi demitida, porque, conforme ela mesma, "dava conta das tarefas".

Além disso, todo o seu salário "ia para jogo". Logo entrou no cheque especial, lançou mão de empréstimos - coisas que jamais fizera antes. E apostando literalmente "até o último centavo", não só deixou de pagar as taxas de licenciamento e o IPVA de seu carro, como também as últimas parcelas de seu apartamento, onde residia com a mãe, tendo que entregá-lo à construtora e ir para um menor. A escritora admite:

[Eu] não pagava mais nada. Quanto mais dívidas eu fazia, mais tinha vontade de jogar, na esperança de ganhar um bom prêmio, regularizar minha vida e poder parar. Mas, quando ganhava, jogava novamente até o último centavo, sempre pensando em ganhar mais.

A essa altura, Ana Rita já havia chegado às máquinas caça-níqueis e perdido o primeiro trabalho importante da filha... "Troquei essa emoção por algumas horas no bingo! Senti que estava enlouquecendo: de noite, sofria por fazer a minha filha sofrer; de dia, não via a hora de ir para o bingo". Ela desabafa:

Uma nas [sic] coisas mais angustiantes no jogo é a volta para casa, o que, no caso de jogadores no meu estágio, só acontece quando não se tem mais dinheiro algum. A realidade chega de forma brutal. Sem luzes coloridas, sem tapete vermelho e sem um centavo no bolso, a realidade explode como uma bomba no seu colo.

É extremamente doloroso perceber sua dignidade arruinada, seu amor-próprio no chão e, mais que isso, que não se é a pessoa que imaginava ser.

Em Diário de uma (ex-) JOGADORA, a autora conta que após cerca de seis meses apostando, começou a procurar ajuda. Um dos locais a que recorreu foi o Programa Ambulatorial do Jogo - PRO-AMJO, que funciona em São Paulo. As profissionais que encontrou, todavia, chocaram-na pela "falta de sensibilidade":

... Jovens recém-formadas, que me crivavam de perguntas de maneira totalmente impessoal, começaram a me dar a sensação de [que] estavam mais interessados [sic] nos dados que eu poderia fornecer para as suas pesquisas do que com a minha reabilitação.

Fiquei chocada com a falta de sensibilidade das estagiárias. Elas estavam ali se preparando para exercer a profissão de psicóloga, mas não demonstravam um mínimo de empatia com os pacientes, fragilizados e desorientados. Mal cumprimentavam, deixando claro que seu interesse eram os números, as estatísticas, e me interrompiam bruscamente quando qualquer questionamento ou tentativa de me explicar fugia do seu roteiro de perguntas.

Saía do Ambulatório me sentindo humilhada e, invariavelmente, chorando.

Enquanto discorre sobre a sua peregrinação atrás de uma cura para a sua compulsão, Ana Rita vai nos informando sobre sua história familiar e as elucubrações mentais que fez, a fim de entender por que, afinal de contas, tornou-se uma viciada em jogatina. Em bingo. Ela também expõe todos - eu escrevi todos - os seus sentimentos: "sentia inveja de quem aparentava ter muito dinheiro e nenhuma conta para pagar, de qualquer um que se afigurasse melhor, mais inteligente ou sagaz, mais bonito, tranquilo ou feliz".

Fotografia de Bobby Miku

Padre Reginaldo Manzotti afirmou corajosamente certa vez, também durante um acampamento de oração na Canção Nova, que a maioria de nós carrega uma "cruz de isopor". Ele sugeria à audiência e a nós, telespectadores, que fôssemos ao Hospital de Câncer de Barretos para vermos o que é "problema de verdade". Estava certo. Corajosamente certo.

Quando eu estive em Aparecida do Norte, em São Paulo, no ano de 2008, visitando o Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, surpreendeu-me me dar conta de que tudo - sim: eu escrevi tudo - o que os devotos pediram e agradeciam, através de objetos expostos na "Sala dos Milagres", eu já tinha! Emprego, noivo, casa, saúde... Foi um choque perceber que, naquela época, eu já possuía tudo aquilo que, segundo as outras pessoas, as deixaria felizes. Para quê reclamar então?

Diante de problemas como o vício em drogas ou no jogo, a minha cruz é de isopor. Assistir todas as quartas-feiras ao programa Intervenção e ler o livro Diário de uma (ex-) JOGADORA me deram plena consciência disso. Experimento os mesmos sentimentos que tive em 2008, quando visitei Aparecida. Sentimentos de comoção, perplexidade, compaixão e, também, vergonha de mim mesma, por reclamar tanto por questões tão fúteis.

Tem gente morrendo de fome no mundo e tem gente querendo ser gente no mundo (parodiando os versos de uma belíssima canção do meu Tio Luiz Alberto Camargo, cujo título é Parada Obrigatória para Pensar e Dizer as Coisas). Os viciados deixam de ser gente e se tornam objeto do vício. Joguete da dependência.

Que Deus nos dê a lucidez de parar de reclamar por coisa à toa e força aos dependentes químicos para que se tornem gente de novo. E a seus familiares, para que carreguem essa cruz pesada, de madeira maciça - essa sim, uma cruz de verdade -, com paciência e fé.

Para encerrar este Post d'A Católica, deixo com você duas orações.

A primeira é a Oração do Alcoólatra, que pode ser também a dos viciados em outros tipos de drogas: cigarro, cocaína, antidepressivos, pôquer... A segunda, Oração Intercedendo pela Cura Interior de Alguém, quero fazer pela paulista Ana Rita e a norte-americana Kristine. Se você conhece alguém que tenha um vício e queira rezar por ele (ou ela), basta substituir os nomes de Ana Rita e de Kristine. Saúde e Paz!!

Oração do Alcoólatra
(Orações de Poder II, Raboni editora)

Meu Deus, a minha fé se firma no poder superior de Vossa Divindade.
O Vosso poder contrasta com a minha fraqueza.
Basta um copo de bebida para me derrotar e humilhar!
O pior é que a minha doença envergonha e faz sofrer toda a minha família...
Meu Deus, ajudai-me e socorrei-me!
Que a Vossa bondade infinita perdoe os meus fracassos;
a Vossa graça levante minha vontade
e me torne capaz de vencer a tentação do álcool.
Nossa Senhora, refúgio dos pecadores e consoladora dos aflitos,
rogai por mim e por todos os alcoólatras. Amém.

Oração Intercedendo pela Cura Interior de Alguém
(Orações de Poder, Raboni editora)

Senhor Jesus,
eu Lhe peço que entre no coração de Ana Rita e Kristine
e toque aquelas experiências de vida que precisam ser curadas.

Você conhece muito melhor a Ana Rita e a Kristine
do que elas próprias conhecem a si.

Derrame, então, o Seu amor em todos os cantos do seu coração.

Onde quer que o encontre ferido, toque-o, console-o, liberte-o.

Se elas se sentem só, abandonadas, rejeitadas pela humanidade,
conceda-lhes, mediante Seu amor regenerador,
uma nova consciência do seu valor como pessoa.

Jesus,
eu entrego a Ana Rita e a Kristine totalmente a você:
seu corpo, mente e espírito, e Lhe agradeço por restaurar a sua integridade.

Obrigada, Senhor.
Amém! Aleluia!

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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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