29 de abril de 2016

O verdadeiro Lázaro

Tela: Love Locked Out (1890),
Anna Lea Merritt

Existem mendigos às avessas:
vão de porta em porta
com uma oferta.

E quem se julga rico,
mas só tem migalhas,
nunca as mantém abertas.


28 de abril de 2016

Construção

Tela: Detail of The School of Athens showing
Heraclitus and Michelangelo Buonarroti
as one person
- 1509 - Raphael

Para Y

Ó estrutura frágil:
palavras sempre vão ao chão.
Seja porque não dão conta
ou porque os atos abalam a conexão.


22 de abril de 2016

Amantes

Tela: Impression, soleil levant (1872), Claude Monet

Há uma hora em que só o dia e eu despertamos.
Enquanto o resto placidamente se estira.
E um com o outro, flertamos,
num delicioso suspense de amantes,
hiato cheio de anseio e neblina.
Então o horizonte se espreguiça
e a cidade boceja
com galos, carros e demais latomias.
E o que era a nossa delícia
depressa se enche e nos distancia.


16 de abril de 2016

Formiguinha

Tela: Im sommerlichen Laubwald, Julius Exter (1863-1939)

Recolhe tudo. Não se faz de rogada:
naco, pitaco, aparte.
Se refestela com migalhas:
pra ela, toda vírgula tem seu quilate.


11 de abril de 2016

O tirano

Tela: Helen of Troy (1867),
Anthony Frederick Augustus Sandys

Ouço passos no corredor:
chega o exército inteiro.
Arrebata a sede e em redor:
de reverter, não há meios.
Sem encarar,
desarma ligeiro.
Sem descarregar,
acerta em cheio.
Sua presença subjuga o espaço:
o amor deixa tudo alheio.


10 de abril de 2016

Viver em Minas

Foto: Ouro Preto, Minas Gerais, Brazil,
view from the old School of Mines.

In the right, the church of São Francisco de Paulo;
in the center, the church of São José. Autor: Alvesgaspar

Aqui em Minas não tem infinito:
montanhas cortam do horizonte, a linha.
Por não termos perspectiva
nos é forçoso focar, desde criancinhas.

Pro mineiro são cheias de graça, as coisinhas:
bordado, renda, broinha, cafezinho e cachacinha.

De um mirante, toda vista tem jeitão de lapinha:
as cidades, entre serras, espremidinhas.

Muito lar é feito gruta - fria e sombria,
onde papai e mamãe se beijam
(como se se amassem ainda).

E, na caminha, quem só mais tarde
(como bom mineiro) desconfia
tenta achar o sono sem ajuda de estrela-guia.


Encantamento

Tela: Harlequin in love (1912), Konstantin Somov

Pra quê esta mise-en-scène:
"Quem somos?"; "Pra onde vamos?"?
O espírito já entendeu:
a matéria foi dominada até o âmago.


8 de abril de 2016

Azul é a cor mais quente

Tela: Charing Cross Bridge (1899), Claude Monet

Faltam termos pra nós.
Nenhum código dá conta do nosso propósito,
nosso discernimento.
Deixamos as línguas desenrolarem o entendimento.
A lacuna não prima,
porque as sentenças que não sabemos, provemos.
E assim salvamos do esquecimento
este trabalho lento, de sol a sol:
sobre o chão árido da timidez e do isolamento,
armamos uma ponte de afeto, desejo e desregramento.


6 de abril de 2016

A chama

Tela: Off (1899), Edmund Blair Leighton

A meus olhos luzia fremente -
me inflamei e fui em frente.
Sussurrei de pertinho (intimamente)
e o que eu supunha resiliente
se apagou. Sem causa aparente.


2 de abril de 2016

Às armas!

Tela: Der Heilige Georg (circa 1514), Lucas Cranach d. Ä.

Esbarrei na lança de Jorge -
pretendo pegá-la pra mim.
A minha é curta, desajeitada:
como lidar com dragão
se falha até com barata?

Sina de cristão é não ter arma que valha
de próprio punho, forjada,
mas tomá-la do santo, emprestada:

Tao de Francisco
chaga de Rita
bota de Expedito
rosa de Teresa
de Antônio, o lírio.

Empunho flor e planto espada
contra qualquer inimigo:
nó na garganta
olhar perdido
dor no cotovelo
e coração partido.