31 de janeiro de 2015

Florações

Tela: Algarrobo (1899), Joaquín Sorolla y Bastida

O cajueiro sabe
que a primavera
levará seu fardo.

A quaresmeira
pranteia Cristo
duas vezes no ano.

A sumaúma
termina o calendário
de consciência leve.

Sou como alfarrobeira:
espero por ti
sem "quando".


29 de janeiro de 2015

Endless Love

Tela: Liebespaar (1909), Ernst Ludwig Kirchner

O futuro é branco
e em câmera lenta -
não se sabe
se a moça que mostra
os dentes
está rindo ou chorando.
Nem se o arco
que a bola faz
acaba num pote de gol.
Nem se o azarão
ou o favorito
cruza a reta primeiro.

Quem corre
pisa em ovos,
quem anda
levita
e Buzz Aldrin
parece parado.

Eis-me lá:
lânguida.

No dorso,
sua pegada de urso.
Nossas línguas macias
se entendem.
E se confundem.

O futuro, branco
e em câmera lenta.
A moça dos dentes?
Sou eu.
Rindo pra sempre.


28 de janeiro de 2015

O leque

Tela: Der rote Fächer (1892), Eugene de Blaas

Gostei tanto de você,
que virei leque fechado.

Sem expor a minha estampa,
não me arrisco a desagrado.

Vai que é minimalista?
Meu desenho é rebuscado.

Vai que gosta de rendado?
Meu arremate é laminado.

Ligeireza e golpe acústico
no abrir e no fechar?
Ts. Ts.
O meu corpo é delicado.

Reservada em minhas
dobras
no calor de fevereiro,
seu toque rústico
é uma miragem
que só agita a minha sede.


27 de janeiro de 2015

Alvorecer

Tela: Green Field (1889), Vincent van Gogh

Troncos reluzentes se estufam,
safiras ornam a grama,
o pomar se veste de filó.
Ao redor, uma saia farfalha.

Dentro, a faísca
que despertou a paisagem:
o amor me visitou.


25 de janeiro de 2015

Paixão

Tela: El Jaleo (1882), John Singer Sargent

Como pode passar rápido,
e deixar pegada funda?

Sair há horas da água,
e ela continuar revoluta?

Que vento é esse que soprou há dias,
e a copa fica balançando?

As pedras sossegaram,
mas a poeira segue levantando.

Recolheram as brasas apagadas,
e dentro elas estão inflamando.

A festa acabou,
mas depois que ele me viu
ainda ouço a guitarra:
vivo dançando.


A Paquera

Tela: Boating Couple (said to be Aline Charigot and Renoir) - about 1881 - Pierre-Auguste Renoir

Pus uma pedra
sobre a página -
mas pra ela não virar.

E todo momento,
como quem abre a Bíblia
no Salmo 90
e a põe pra enfeitar,

Releio as linhas
daquela tarde
em que nos pusemos
a conversar.

Suas palavras
tramaram uma rede
da qual não quero
me levantar.

Descanso (ou me inquieto?)
nos olhos que se cruzavam
e nas bocas
que não se punham a beijar.


Virgem

Tela: Flora (1889),
John Roddam Spencer Stanhope

Não sei quando vou revê-lo:
virei muro,
pra poder me reconhecer.

Diverso da flor que seca,
da árvore que desfolha,
do pássaro que depena,
do gato que foge -
o muro se aquieta, inerte.

Assim eu pensava
até me ver brotar musgos,
grafites, descascados.

Sim: as estações, em todos,
deixam suas marcas.

Você vindo ou não,
seguirei intacta.


22 de janeiro de 2015

Embriaguez

Tela: The way you hear it, is the way you sing it (1665), Jan Steen

O álcool faz suas vítimas.
A mais óbvia,
o embriagado:
rouba-lhe o senso,
o nexo
e as coordenadas.

Mas não a única.

Mais tarde,
suspira
quem ouviu juras de amor
de quem não se lembra
de nada.


Volátil

Foto de Alex Valavanis

Uma bala
é a duração da felicidade.
(Na boca, um rasto de menta.)

E vamos em busca,
mesmo sabendo que a explosão
fica na saudade:
a realidade, não sustenta.


21 de janeiro de 2015

O deleite

Tela: Le Déjeuner au bord de la rivière (1879), Pierre-Auguste Renoir

Que você é uma flor
eu já sabia:
eis um inseto
pousado em sua barba.

O impulso de enxotar,
domino
pelo prazer de vê-lo
empossado
onde eu queria reinar.


20 de janeiro de 2015

Amor

Tela: Liebespaar (1913), Egon Schiele

A uns, o que é plano
e claro
pra divisar
o outro lado.

A mim, becos
e arbustos -
o que não se vê
e exige tato.

Seu rosto é assim:
imerso na barba,
quis tocar
(paixão no ato).


Adubos

Imagem de Karen Arnold

Numa caixa
guardo tudo de mais lindo:
grampos da minha avó
cílios postiços da madrinha
e um opúsculo
que minha prima escreveu
sobre a minha vida.

Não uso bobs
os cílios perderam a cola
e o opúsculo
vai até meu último ano
na escola.

(Quem não tem souvenirs
pra alimentar
a própria árvore genealógica?)


Preferência

Tela: Hercules - second half of 17th century - Anonymous

Coração vulgar
em figura franzina
que se inflama
com as loiras e lindas.

Seu porte repulsa
por ser puído:
sem eira nem beira
não presta abrigo.

Se fosse mulher,
ficaria sozinho.
Mas é homem -
há alguém a caminho.

Imensa,
de perfil protetor.
Ou fragilizada,
precisando de amor.

Pode até ter potência,
mas dispenso os favores:
sem força e eloquência,
nada de amores.


Metamorfose

Tela: La Toilette (1875), Étienne Tournes

Sabonetes líquidos
arrancam o meu couro -
alergia adquirida há anos.

Vão lavando
e escamando a minha derme -
como o bebê
que esqueceram na estufa.

Amiúde,
por dever de higiene,
perco as cascas
uma a uma.

No espelho,
o que era jacaré
ganha essência de molusco.


Fleuma

Tela: Nude in Dappled Sunlight (1915), Frederick Carl Frieseke

Sob calor
tudo sobe:
balão,
ânsias,
membros.

Mas sol vespertino
é fraco:
requenta sonhos,
soluções,
lampejos.

Muito pouco
evapora.
Comigo,
velhos desejos.


O atleta

Foto: Statue de Jean de Valois-Orléans,
comte d'Angoulême (1399-1467), par Gustave Louis Gaudran (1876)
-

Autor: JLPC Wikimedia Commons CC-BY-SA-3.0

Para Kaká

Enquanto todos te imaginam
correndo, ofegante
eu te prefiro de joelhos.
Cortado pela metade,
adorando o Criador.

Diminuto
pela razão exata -
o que te torna sedutor.

Num mundo
onde todos se põem nas alturas,

Tu
aspiras a elas pela via certa:
rente ao chão,
como condiz às criaturas.


Devoção

Foto de Ramon FVelasquez

É uma estátua feia de Jesus.
Dedos juntos,
olhos estatelados.
O cabelo
parecendo um manto
mal-lavado,
posto rígido
sobre a cabeça inclinada.
Pra esquerda.
(Sempre.)

No centro
um coração vermelho
de raios alaranjados.
Tão mal-feitas
a chama, a cicatriz.
Os pés escondidos
sob flores de plástico.

Lá no Céu,
imagino o retratado
mão na testa,
inconformado.
(Quem gosta
de ter filme queimado?)

Mas eis que uma senhorinha
entra
lhe estende a mão
e de olho espremido
faz uma prece sentida.
É Deus -
o que mais importava?


1 de janeiro de 2015

Sem Resposta

Tela: Aufgehender Stern (1931), Paul Klee

Aqui,
num ponto miúdo
no Google Maps,
forjo uma oração
pra subir ao céu.

Delicada, qual agulha
atravessa as malhas
de ar
e eu torcendo
pra ela não se curvar.

Num ponto inescrutável,
que o Hubble
não captou,
um anjo a vê passar.

É uma estrela
às avessas:
errante,
tomou rota ascendente
sem nunca pousar.